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Contos e ditos

A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.

Contos e ditos

A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.

18
Dez18

Natal na aldeia

Inês Aroso

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Autora: Melissa Gomes Lírio

Vencedora ex-aequo do Concurso de Natal(idade)

 

A viagem até à casa que o vira nascer tinha sido longa, e mal João estacionou na larga entrada empedrada não conseguiu evitar um sorriso. Natal ali era o verdadeiro Natal, já conhecera Natais de outros géneros e não lhe tinham sabido a nada. Ali é que estava a mãe, as tias e os primos (ainda implicavam uns com os outros como se fossem miúdos!) e ali estava também Teresinha, a governanta da casa que era quase como uma segunda mãe.

Entrou pela porta da cozinha, quase sempre aberta, confiante na pacatez dos habitantes da aldeia, e o cheiro a açúcar e canela entrou-lhe pelo nariz sem pedir licença.

- Teresinha! – gritou, abraçando a senhora com força pela cintura, enquanto ela se tentava soltar do aperto repentino.

- Ai, menino, ganhe juízo, que já não tenho idade para estas coisas! Os olhos de Teresinha brilhavam, agora, ao ver o “seu” menino de volta a casa. Fazia-se sempre de durona, mas no fundo era um coração mole.

- Já temos doces prontos? – perguntou João, agarrando num pedaço de pão e metendo-o à boca com sofreguidão.

– Estou cheio de fome! Mal teve tempo de mastigar o pão e, ato imediato, dirigiu-se ao balde do lixo para se ver livre dele, com uma careta.

- Este pão é horrível!

- As rabanadas são feitas com pão velho, menino! Está fartinho de o saber! Agora deixe-se de palhaçadas e chegue-me aí esse vinho do Porto, sim?

João esticou a mão e alcançou a garrafa que lhe estava próxima. Antiga, fazia parte da larga coleção de vinhos que os avós tinham deixado, como a tantas outras coisas, quando haviam partido. Abriu a tampa e cheirou o conteúdo, que lhe trouxe à memória Natais passados, como aquele em que os primos tinham feito um espectáculo cómico com as cuecas da avó na cabeça. A cara da avó quando os vira naqueles preparos tinha sido impagável… o pior fora arrumar a gaveta que haviam remexido até estar tudo impecavelmente organizado de novo, mas valera a pena! Os primos mais novos já não têm os mesmos interesses que ele e os pais deles tinham. É vê-los chegar munidos de todo o tipo de aparelhos tecnológicos, ligados a estranhos de todo o mundo e desligados daqueles que verdadeiramente interessam. Vale que o Jorge, para este ano, instituíra a proibição de aparelhos electrónicos de qualquer tipo, incluindo da televisão.

- Menino, continuo à espera desse vinho do Porto! Depois não se queixe se não houver rabanadas!

João entregou-lhe a garrafa e sorriu àquela falsa dureza. Teresinha tinha-o ajudado a criar e nutria por ela um carinho enorme. Mulher trabalhadora toda a sua vida, ela e o marido, contava ela, tinham sido casados à primeira vista. João ainda tentara corrigi-la e dizer que havia sido “amor à primeira vista”, mas ela prontamente lhe explicara que não, que nunca o havia sequer visto antes do casamento arranjado, por isso era mesmo “casados à primeira vista”. Aprendera a gostar do marido, dizia, a respeitá-lo e a ajudá-lo no que fosse, nada daquilo que se vê agora, que os casais não duram nada porque não há esforço nem respeito.

Assim que o marido morrera, Teresinha assumira aquela casa como se fosse verdadeiramente sua, e de tudo fazia para que nada falhasse e para agradar a todos. Isso via-se em detalhes pela casa toda, nos arranjos de flores frescas da época que embelezavam invariavelmente determinados pontos da casa ou o facto de ter o cuidado de cozinhar os pratos preferidos de cada um dos visitantes da casa.

O som das rabanadas a fritar trouxe a João um conforto que lhe inundou a alma de um calor bom, reforçado pelo ruido do motor do carro que acabava de chegar e ainda se fazia ouvir lá fora. Não sabia quem seria, mas fosse quem fosse era família, era querido e vinha de longe para se juntar a ele e aos outros ali, no seu ninho seguro, perfumado de açúcar e canela e quente da enorme lareira que iluminava a sala e do fogão a lenha que cozinhava iguarias escondidas pelas tampas das panelas. Fosse quem fosse era mais uma peça no puzzle único da família que se iria completando pela tarde fora, até os faróis dos poucos carros a cruzarem a serra serem as únicas luzes naquela aldeia quase perdida. Era mais um Natal a começar e João tinha a certeza de que seria perfeito.