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Contos e ditos

A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.

Contos e ditos

A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.

27
Out18

Ângela a cores

Inês Aroso

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Ângela tem 41 anos, dois filhos, é casada. Quando a filha mais velha entrou na universidade, resolveu voltar a estudar. Como estava desempregada, para ajudar nas despesas, ficou a trabalhar em part-time na secção de limpeza da universidade da filha. Foi a vaga mais fácil: os mais novos não queriam esse tipo de “trabalho sujo”, preferiam ficar na biblioteca, na reprografia ou, na pior das hipóteses, nos bares ou nas cantinas.

Aparenta ser mais jovem, é magra, veste-se de forma jovial, num estilo hippie, algumas trancinhas no cabelo, pulseiras em couro, e sempre muitas flores, na roupa, nos brincos e até na tatuagem que fez quando a filha nasceu, em forma de amor-perfeito. Quando está a trabalhar, toda esta cor fica escondida por debaixo de uma feia e fria bata branca e o cabelo é preso com um elástico.

Não se importa com o trabalho que arranjou, porque, para ela, não há trabalhos menores: tudo depende da atitude de quem os executa. E ela coloca tanto empenho e carinho naquele serviço como nos estudos no curso de Psicologia, nos quadros que pinta, nos cozinhados que faz para a família, no voluntariado que faz uma vez por semana no hospital. 

Sempre fora assim: dedicada e generosa. Quando fez 18 anos, começou a vender na rua os quadros que pintava e a desenhar alguns retratos. Foi assim que conheceu o marido, músico de rua. Quando o relacionamento ficou sério, resolveram viver juntos e arranjar um trabalho mais estável. O marido ainda conseguiu emprego como técnico de som num bar, embora mal pago era certinho, mas Ângela fez um pouco de tudo: foi ajudante de cabeleireira, lavou pratos em restaurantes, trabalhou num quiosque, numa frutaria.

Nunca deixou o amor pela pintura e foi precisamente depois ter estado a pintar, numa tarde de sábado, enquanto a filha a ajudava a limpar os pincéis e as aguarelas, que percebeu que ela estava doente. Não era uma doença evidente, mas Ângela sabia-a doente. O brilho no olhar parecia sumido. Dizia estar sempre cansada. Tinha deixado há semanas de ir correr, algo que sempre adorara. Deixou de sair com as amigas e até de as levar lá a casa. Na escola, continuava a ser uma aluna brilhante, com média de 18 valores. O médico receitou-lhe vitaminas.

Ângela pressentia que o problema não se ia resolver com vitaminas. E a sua intuição de mãe estava certa. Depois de várias consultas médicas, soube que a filha tinha uma perturbação grave de ansiedade, que a levara a isolar-se e a entrar em depressão. Ângela passou de uma fase em que se culpava, para outra fase de revolta, seguindo-se a luta. Foi sozinha ao médico e à psicóloga para fazer perguntas, pesquisou sobre o assunto na biblioteca e na Internet. Até resolveu tirar o curso de Psicologia, para a poder compreender e ajudar mais. A filha é a Sofia.

21
Out18

Lágrimas e glitter

Inês Aroso

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O pai abandonou a mãe de Cátia quando esta tinha 4 anos. A mãe conseguiu trabalho num hipermercado, por turnos, e Cátia cresceu sozinha.

Aos 14 anos, perdeu a ingenuidade com um colega da secundária, um rufia de 19 anos, que a seduziu, durante meses, para a levar para a cama e nunca mais lhe falar. Cátia deixou de acreditar nos homens, dos quais procura vingar-se de alguma forma, pela mãe, por ela.

Atualmente com 21 anos, Cátia vive de e para as aparências: especialmente nas redes sociais. Tem que ter sempre o telemóvel mais recente e mais esperto, embora ela deva pouco à inteligência. Não sendo uma aluna brilhante, toda ela é brilhos: nas roupas, nas capas do telemóvel, nos brincos e outros acessórios. De cabelo loiro platinado, veste-se sempre como quem vai para uma festa.

Na verdade, desde que foi para universidade, passa mais tempo em festas do que nas aulas. O sonho dela é ser uma youtuber ou blogger famosa. Experiência não lhe falta, com as fotografias constantes que publica no Facebook e no Instagram, estudando (sim, porque isso ela estuda) as melhores poses, os melhores locais, os melhores ângulos. Sabe tudo sobre famosos, porque é com eles que acha que pode aprender alguma coisa.

Quando se exibe, gosta dos piropos dos homens, porque sente que exerce poder sobre eles. Acha que as mulheres só a criticam por inveja ou ciúmes, pois são umas tolas que acreditam no amor. Em cada selfie, cada filtro, cada “gosto”, cada novo seguidor, ela apazigua as dores do passado e (acha que) constrói um futuro.

14
Out18

Felizes para nunca

Inês Aroso

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Ele sabe o que quer da vida. Ela sabe que o quer na sua vida. Ela não está incluída nos planos dele. Ela não compreende como é que algo tão intenso não é correspondido. Da última vez que conversaram, ela achou que era a última vez que se viam. E foi. Ela desistiu de lutar por ele. Limitou-se a viver. Um dia de cada vez. Às vezes, dois ou três dias, para custar menos. Felizes para sempre? Sim, nas histórias infantis e nos filmes românticos que nos impingem, para fazerem disparar as vendas de anti-depressivos e chocolates.

08
Out18

Apagão

Inês Aroso

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Desligou tudo. Fechou todas as contas nas redes sociais. Encerrou o computador. Apagou a luz do candeeiro. Desativou o telemóvel. Deitou-se na cama, procurando, ele mesmo, desligar-se. Não conseguia adormecer. Não encontrava o botão para apagar. Eram os problemas graves no trabalho. Os salários em atraso. As saudades de quem partira cedo demais. A dificuldade em lidar com a doença complicada da namorada. Desistiu de tentar adormecer. Foi até à sala. Viu um candeeiro na rua. A luz estremecia, quase a apagar, mas mantinha-se acesa, mesmo que trémula. Tal como ele se sentia. Acabou por adormecer no sofá e acordou com os primeiros raios de sol a aquecer-lhe o rosto triste. Os olhos mantiveram-se fechados. Gostava de ouvir o mundo a recomeçar. Os primeiros carros a passar na estrada. Os pássaros e os cães em alvoroço. As vozes de quem já andava lá fora a fazer pela vida. Mas, nessa manhã, decidiu que o dia não ia nascer. Preparava-se para descer as persianas e correr as cortinas, quando viu a luz do candeeiro da rua. Já era dia, mas ela ainda ali estava, teimosa, a piscar. Percebeu a mensagem. Preparou um café forte e umas torradas, tomou um duche e foi trabalhar.

 

06
Out18

Desfeita

Inês Aroso

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O vento soprou e ela caiu. Desfez-se em pedaços. Aos poucos, com muita paciência, colou os vários pedaços de si mesma, espalhados pelo chão. Uma ou outra peça ficaram fora de lugar. Passaram algumas luas, mas, de novo, a força, daquele vento, que ela não dominava, fê-la voltar a cair. Mas como lhe faltavam peças, foi mais difícil voltar a ser inteira. Pediu ajuda e lá conseguiu reconstruir-se. Desta vez, as frestas deixavam entrar o vento, o frio, a dor, mas também a luz, o calor e o amor. Começou a perceber o vento e desistiu de o tentar controlar ou evitar. Só assim era posssível que ele não a destruísse, de novo. Bastava-lhe saber viver assim, imperfeita. Assumidamente, imperfeita e incompleta.

02
Out18

Fugir ou lutar?

Inês Aroso

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Quem conhece a ansiedade, sabe que ela nos prepara para duas coisas: fugir ou lutar. Umas vezes fugimos, outras vezes lutamos. De qualquer das formas, no final, acabamos sempre cansados, muito cansados. Não recebemos medalhas, nem prémios, nem sequer somos reconhecidos pelo esforço, bem pelo contrário. Quem não conhece os guerreiros que vivem com ansiedade, confunde-os muitas vezes com pessoas preguiçosas, irritadiças, tímidas, anti-sociais, enfim, só coisas pouco simpáticas. Porém, os sintomas que esta desencadeia são físicos, reais, dolorosos, intensos, incapacitantes.

A ansiedade que leva, muitas vezes, a ataques de pânico, não escolhe um alvo perfeito: homens e mulheres, novos e velhos, estudantes e trabalhadores, pobres e ricos, solteiros e casados, felizes e infelizes.

Nem todos os dias são iguais. Mas, certos dias, encontramos "leões", que mais ninguém vê. Que nos fazem fugir. Que nos fazem lutar. Mas contra nós mesmos lutamos sempre, até nas tarefas mais simples, dependendo de onde se encontram os nossos "leões": num centro comercial enorme, numa viagem de carro, num avião, num autocarro cheio de gente, numa fila de supermercado, na apresentação de um trabalho na sala de aula, num ginásio, num simples passeio a pé.

Uma coisa é certa: é possível saber conviver com os "leões". Raramente conseguimos isso sozinhos. Há médicos, há psicólogos, há terapias de relaxamento, há amigos, há livros. Preocupa-me que as pessoas ainda sofram em silêncio ou tenham que inventar desculpas, com medo dos estigmas relacionados com problemas ou doenças do foro psicológico. Preocupa-me ainda mais que professores, educadores, familiares, chefias, colegas, amigos e até alguns médicos não compreendam e não saibam ajudar em vez de criticar, gozar ou desvalorizar.

Como lutadora, como professora, como mãe, como amiga, sempre estarei pronta para ajudar quem precisa. Eu tive (e ainda tenho) os meus "leões", mas já ajudei (e espero continuar a ajudar) a conviver com os "leões" alheios.

Nesta fase da minha vida, a minha maior luta é contra o estigma em relação a estes tópicos. Hoje, falo-vos da ansiedade, mas irei trazer-vos outros temas. Só o conhecimento pode travar a ignorância e o preconceito e promover a abertura de espírito!