A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.
A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.
Rafael tinha 30 anos e desejava todos os dias ganhar o Euromilhões. Sonhava muitas vezes com isso. Lá acabou por ganhar o primeiro prémio. Um número com muitos zeros. No dia seguinte, despediu-se (não sem antes mandar o patrão e alguns colegas para as urtigas), reservou um carro novo e reluzente, foi fazer uma almoçarada com os amigos e marcou uma viagem as Maldivas para ele e para a namorada. Quando acordou, atordoado com o jet-lag, pensou que tudo não passara de um sonho. Até lhe parecia ouvir o despertador a tocar e o bebé dos vizinhos de cima a chorar. Pegou no telefone para reclamar com a recepção do hotel e percebeu que, de facto, tudo não passara de um sonho: estava em casa, na cama, ao lado de Samanta, a namorada. O mau-humor durou todo o dia e, nessa tarde, pela primeira vez em muitos anos, não passou pelo café onde bebia umas cervejas, conversava com os companheiros de jogo e preenchia, todos as semanas, o boletim que lhe parecia o passaporte para a felicidade. Foi directo a casa e, como chegou uma hora mais cedo do que o habitual, encontrou Samanta com um tipo do ginásio. Ela ficou atrapalhada e perguntou: "Não foste jogar no Euromilhões?", ao que ele mentiu: "Fui pois, mas como soube que ganhei o primeiro prémio, já nem quis jogar mais". Ela lá lhe disse o "isto não é o que parece, ele é só o meu PT". O PT (ou não) já tinha fugido a sete pés (habituado a correr, devia estar) e Rafael, com toda a calma do mundo pediu à namorada: "Vai lá, segue o teu PT, continua o teu 'treino', mas não voltes. Eu mandarei o meu novo motorista entregar-te as coisas". À noite, ao ver televisão, mais aliviado do que triste, e pela força do hábito, vê o sorteio do Euromilhões. Os números da sorte dele finalmente saíram. Gritou, desesperado! Era tudo demasiado mau!. "Rafael, acorda, o que se passa?", ouviu, ao longe... "Pronto, agora estou maluco, parece a voz da Samanta". E, afinal, era. Abriu os olhos devagar, viu a ventoinha no tecto, a cama grande, o mar visto da janela. Era verdade. A sorte dera-lhe o primeiro prémio. Sem contar o sonho a Samanta, disse-lhe: "Agora que tenho mais tempo livre, acho que vou contigo ao ginásio, dizes tão bem do teu PT"... Com aquilo tudo, aprendera que os sonhos, às vezes, não andam muito longe da verdade.
Ana acordava todos os dias às 6h30. Fazia os pequenos-almoços. Preparava as merendas para o filho e para o marido. Arrumava a cozinha e levava o filho de 9 anos à escola. Ia trabalhar já cansada.
Quando chegava do emprego, ainda ia às compras, ajudava o miúdo nos trabalhos de casa, preparava-lhe o banho, fazia o jantar, passava a roupa a ferro e, no meio disso tudo, tentava espreitar uma novela ou uma série na televisão.
Um dia, o marido disse-lhe que queria o divórcio, depois de 12 anos de casados. Justificou-se em poucas palavras, admitiu que estava farto do seu aspecto desmazelado e mau-feitio. "Andas sempre irritada e cansada", queixou-se.
Depois de muito choro, pena de si própria e uma pesada sensação de culpa, Ana ganhou forças para recomeçar uma vida sem o homem que achara que amava. Estivera tantos anos a dar o seu melhor ao marido, para quê? Afinal, esforçara-se em demasia para agradar a quem não lhe reconhecia o valor. A preocupação dela era o filho, mas ele aceitou a separação dos pais melhor do que a mãe pensara.
Numa das caminhadas que Ana começou a fazer todos os dias, Ana viu o ex-marido com uma nova namorada de mãos-dadas. Percebeu, naquele instante, que ela tinha sido a verdadeira razão da separação. Era a irmã do patrão. "Uma dondoca", murmurou ela, entre dentes. Nessa noite, antes de adormecer, Ana decidiu que daí em diante ia colocar-se-ia se em primeiro lugar na equação, em qualquer relação amorosa, de amizade ou até no trabalho. O seu lema mudara: "Dou o meu melhor a mim mesma, não aos outros".
A palavra "sequela" é rica (sem ser cara), à semelhança de outras, no nosso léxico. Para além do uso comum, uma "sequela" tanto se utiliza para questões médicas, como jurídicas, como no cinema e na literatura. Claro que a mim, como alguém que respira histórias (além do ar), é este último tipo de sequelas que me interessa.
Há histórias (que escrevemos para um livro ou para um argumento de um filme) já a pensar na sequela (ou em várias). São os fins em suspenso que aguçam a vontade de ler ou ver o resto do enredo. Nalguns casos, o fim em aberto é demasiado óbvio e percebemos: "Ah, isto vai ter sequela!". Noutros casos, os livors, filmes ou séries são tão bons ou têm tanto sucesso que o próprio público pede sequelas. Umas correspondem às exptectativas. Outras são duramente criticadas.
Pois bem, a vida também tem as suas sequelas. O regresso à terra da infância que não pensávamos voltar, por causa do trabalho, e ver que o que é bom ficou ou, no fim de contas, nunca existiu. O retomar de um namoro ou casamento que tinha terminado e perceber que o final foi precipitado ou certeiro. Voltar a estudar quando achávamos que não tínhamos mais nada para aprender e percebermos que não somos capazes ou foi a melhor decisão da nossa vida. A visita à casa dos pais ou dos avós e ver tudo com outros olhos e as memórias serem uma nova história, boa ou má. O deixar a vida certinha e monótona para começar a vida noutro lugar, noutra profissão, noutra posturam, em que tudo pode dar certo ou nem por isso. Reencontrar aquela amiga que não víamos há 10 anos e que, apesar da distância e o tempo, a amizade está lá ou despareceu a cumplicidade. Esbarrar-nos, na idade adulta, com uma velha paixão de adolescência e percebermos que é esse o amor que merecemos e precisamos ou que, na verdade, nos livramos de boa.
Eu acredito que as sequelas são apenas uma de duas oportunidades: melhorar ou piorar a história original. As coisas nunca ficam iguais. Costuma dizer-se que se a vida nos dá limões, devemos fazer limonada. Umas vezes é doce, outras amarga. Acontece que a vida também nos dá sequelas, cabe-nos a nós decidir se queremos assumir o risco. É preciso coragem para fazer uma sequela. Na ficção e na vida real. Mas se a vida nos dá sequelas, não tenho dúvidas, devemos vivê-las. Todas as histórias merecem novos finais, sejam eles quais forem. Não há nada mais triste do que deixar histórias por contar e por viver.
As férias quebram as rotinas. Desligamos o despertador. Esquecemos os horários. Deixamos de nos preocupar com o que fazer para o almoço ou o jantar: arranjamos umas sandes e umas frutas, entre uma ida à praia ou um dia na preguiça ou vamos, simplesmente, comer fora. Lemos por prazer, tomamos banho de mar ou de rio, não queremos saber do cabelo ou da roupa, esquecemos as dietas, as marcações na agenda e, a dada altura, quase nos esquecemos das birras dos colegas de trabalho e da cara do chefe.
Setembro é o mês de regresso às rotinas. Felizes os que podem tirar férias em setembro e ir contra a corrente! A maioria de nós está no mês mais difícil do ano. Sim, o regresso às rotinas pode ser doloroso! Claro que todos precisamos de rotinas, para sermos funcionais, mas a adaptação não é nada fácil. Desde os horários, às refeições, às obrigações, tudo parece ainda mais difícil do que no ano anterior.
Decidi fazer uma lista para me ajudar no regresso às rotinas. Aliás, as listas são um dos ingredientes típicos das rotinas: listas de tarefas, listas de compras de supermercado, listas de objetivos, listas dos próximos destinos de férias... Mas o que tem esta lista de diferente das outras? Decidi inspirar-me naquilo que mais e menos gosto de fazer, para que o meu regresso à rotina seja menos doloroso.
Cinco dicas para um regresso às rotinas mais equilibrado e feliz
1. Fazer uma atividade nova e que dê prazer. No meu caso pessoal, vou regressar à dança, algo que não faço há mais de 20 anos, mas que é uma excelente terapia para transpirar e desanuviar.
2. Arranjar mais tempo para estar com os amigos. Seja uma tarde, um serão ou, simplesmente, um café, uma chamada, não adiar. Aproveitar esses momentos para rir, conversar e ajudar ou ser ajudado, se for o caso.
3.Desligar do trabalho sempre que possível. Os emails, os telefonemas, as redes sociais, que nos tornam omnipresentes são grandes causadores de stress. É difícil desligar, mas temos (eu sei que tenho) que o fazer. A bem da sanidade mental.
4. Facilitar a vida na hora das refeições. Há quem adore cozinhar (não é o meu caso), mas é inegável, também, que todos adoramos tudo o que nos possa poupar o trabalho em torno da cozinha. Nem sempre o talento e o tempo nos ajudam. Como a mim me faltam ambos, acho fantástica a ideia de uma coisa que descobri recentemente: um serviço de catering ao domicílio.
5. Realizar algo apaixonante. Todos temos atividades que nos apaixonam. No meu caso, é escrever. Mas há muitas outros apaixonados pelas mais variadas coisas: pescar, fazer surf, fazer bricolage, fazer artesanato, ter um canal no You-Tube, fazer costura, andar de bicicleta, enfim. Se conseguirmos (e basta querer para poder) conciliar algo que nos apaixona com as rotinas mais aborrecidas, andamos muito mais felizes.
Ele só via bem ao perto. Ela só via bem ao longe. Ele era feliz sem ela. Ela era infeliz sem ele.
"Quem me dera ter um coração míope", suspirou ela, quando, naquele domingo, no jornal, leu que os míopes vêem muito bem ao perto, mas têm dificuldades em ver ao longe.
Sara, 41 anos, cabelos castanhos, entra na sala quase vazia do café e escolhe o lugar do canto. Aquele local, miraculosamente esquecido pelos turistas que invadem a a cidade, foi dos poucos que sobreviveu à invasão. Manteve a sua essência, entre o familiar e o decadente. É frequentado pelos velhinhos do costume, por algumas famílias do bairro, mas nada de modernices, nem de pontos no TripAdvisor ou indicações no Google Maps. Uma meia-de-leite continua a chamar-se uma meia-de-leite, uma torrada é simplesmente uma torrada e os queques (deliciosos por sinal) são só mesmo os de comer. Aguarda por Pedro, que ficou de ir rever um texto para entregarem ao editor.
As folhas amontoam-se, enquando Sara vai revendo o trabalho. Quando Pedro, 38 anos, cabelos pretos, entra e a cumprimenta, Sara deixa cair as folhas. Corada, tenta desculpar-se com a habitual falta de jeito para manter as coisas em cima da mesa. Não acha sensato dar a verdadeira explicação: a presença dele deixa-a sempre incapaz de pensar por alguns segundos. Fica ainda mais desorientada, ainda mais descoordenada, ainda mais sem palavras do que o habitual. Mas consegue recuperar (embora com algumas recaídas pelo meio) e lá acabam a revisão do texto.
Entretanto, o café já encheu, com as velhinhas que vão tomar o chá com os famosos queques, na fornada de fim de tarde. Resolvem pedir um para cada um e Sara vai mordiscando o bolo e perde-se em pensamentos. Gostava de não sentir o que sente. É uma mulher forte, não lhe agrada que um homem a enfraqueça. Que a baralhe. Que a faça perder o controle da situação. Que antecipe as acções dela. Que lhe leia os pensamentos no olhar. Que a conheça melhor do que ela mesma. Que a faça dizer o que não quer. Que a faça fazer o que não quer.
Ao despedirem-se, Pedro convida-a para ir a casa dele, que fica logo ao lado, para lhe emprestar uns livros. "Desde que não me assedies", avisa sorrindo. Ela, corada, finge amuar e responde: "Tens-te em grande conta. O único crime que posso cometer é roubar-te um livro". E seguem na calçada, com Sara concentrada em não cair nem tropeçar. À entrada do prédio, Sara finge que se esqueceu de um compromisso e diz que afinal não tem tempo. "Estás a mentir", diz Pedro. Sara garante-lhe que não. Ele cala-a com um beijo. Sobem de mãos encostadas...
Na sala, nem olham para os livros, é como se o armário estivesse vazio. Não há livros, não há porta-retratos, não há recordações pirosas, não há nada. Mas há um sofá onde se sentam em silêncio e os corpos chamam um pelo outro. Têm um medo tremendo de estragar a amizade. Mas ela despe-se, sem pensar muito. Arrepende-se, porque na verdade é tímida, e esconde-se atrás das cortinas. "Estão a ver-te do outro prédio", avisa-a Pedro. Ao que Sara responde, com uma gargalhada: "Antes eles do que tu...". E sorri, sem saber como travar aquele jogo de sedução que testa os limites de ambos. Sara ganha coragem ou perde o juízo (tudo é relativo) e pergunta-lhe: "Escondes-me no teu olhar?".
Epílogo: O resto da história é de Pedro e Sara. Ou será de Sofia e Rita? Ou será de Luís e Vasco? Ou será de mim e de ti? Ou será de ti e dele? Ou será de ti e dela? Escondam-se, percam-se e encontrem-se no olhar de quem amam e desejam. Mesmo que seja apenas num conto, num filme, numa música, numa dança, num sonho. A ficção é tão mais completa do que a realidade. Abracem-na.
Há meninas que crescem com o sonho de serem professoras. Há meninos que crescem com o sonho de serem futebolistas. Há meninas que crescem com o sonho de serem cabeleireiras. Há meninos que crescem com o sonho de serem bailarinos. A infância é o tempo dos sonhos mais puros!
Há jovens que lutam muito para concretizarem os sonhos que os movem. Estudam, fazem sacrifícios, trabalham para poderem pagar as despesas, privam-se de festas para um serão de estudo ou um turno extra no trabalho. Há outros que não fazem nada disso. E têm sorte. Uma herança. Uma família endinheirada. Um lambe-botismo intrínseco que lhes permite subir na escadaria do sucesso. Um casamento com uma conta bancária. Uma falta de escrúpulos que abre muitas portas e a atropela quem por lá passa.
Chegado aquilo que poderia chamar o meio-caminho (com 42 anos, tenho sorte se conseguir viver outro tanto), começam-se a fazer balanços. E revêem-se os sonhos. As lutas que se travaram. As pessoas que ajudaram (e as que dificultaram também). Não me arrependo de ter lutado pelos meus sonhos. Não me arrependo dos sacrifícios que fiz. E acreditem: foram muitos! Sou eternamente grata ao exemplo e ao apoio dos meus pais (e da FCT no mestrado e doutoramento). Orgulho-me do que consegui de forma honesta, com amor e gratidão.
Sinto que os sonhos mudam, como o vento, mas a essência, a vocação, está lá, sempre esteve, dentro de mim. E a meio deste caminho que é a vida, concluo que podemos fugir de tudo: dos radares da polícia, da vizinha intriguista, da velhinha peluda que nos quer dar um beijinho, do rapaz que gostamos que não queremos que nos veja de fato-de-treino e cabelo despenteado, dos jantares de Natal das empresas, das sogras chatas, dos vendedores de cartões bancários... Mas de uma coisa não podemos fugir: da nossa vocação. E seja em que idade for, em que momento se encontrem, quando ela bate à porta, se vocês não abrirem, ela vai arrombá-la. Como um dilúvio, vai inundar-vos. Todos os pensamentos e todas as forças serão úteis. Não para pararem a inundação, mas para aprenderem a nadar. Se tiverem medo, usem braçadeiras e bóias. Só se aceitarem a vossa vocação (que é algo muito mais intenso do que um sonho) a vida vai fluir.
O sonho muda. O sonho cresce. O sonho assusta-se com a realidade. O sonho desilude. O sonho até se transforma num pesadelo. A única coisa que permanece é a vocação. E essa não tem grau de formação, avaliação quantitativa, pódio ou quadro de mérito. É quem nós somos. E eu nunca desistirei de ser quem sou. Acredito que um dia vou aprender a nadar nesta corrente forte: é que a vocação arrombou a porta, sem pedir licença.