A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.
A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.
Noutro dia, a Helena perguntava-nos numa rede social: "O que é o amor incondicional?". A resposta mais comum foi: "É o amor entre mães/ pais e filhos". Eu também dei essa resposta.
Em todos os outros tipos de amor, sejam amigos, irmãos, namorados, maridos, mulheres, companheiros, primos, tios, sobrinhos, o que for, queremos reciprocidade, caso contrário, esse amor murcha ou fica tingido. Tal e qual como me acontece, às vezes (mais do que deveria), com a roupa na máquina de lavar, quando misturo cores ou ponho a temperatura muito alta.
No entanto, vamos sempre (eu e outras pessoas como eu) continuar a cuidar e admirar mais algumas pessoas do que elas a nós. Nem sempre esse amor, amizade, carinho (o que queiram chamar) é recíproco. No meu caso, isto não me impede de continuar a gostar de quem genuinamente gosto e não deixarei nunca de gostar delas. Por causa disso, uns chamam-me coração mole, outros boazinha ou até ingénua... Só para falar nos adjetivos mais suaves e simpáticos.
A questão é que há corações que pouco percebem de sinais de trânsito. Nós, que conduzimos a vida com o coração, quando gostamos verdadeiramente de alguém, perdoamos vezes sem conta as infracções: os limites de velocidade, os sentidos proibidos, os semáforos e até deixamos, às vezes, que quase nos atropelem. Podemos perder muitos pontos na carta de condução da vida, mas só sabemos conduzir assim: com o próprio coração, embriagado de excesso de amor pelos outros.
É preciso muito para deixar-mo-nos de dar aos outros. Mas quando estes põem em causa a nossa felicidade, temos que nunca mais passar por essa rua. Ou então passar de outra forma. Dentro dos limites. Sem quebrar regras. Sem deixar que passem por cima de nós.
Garanto-vos, dói-nos muito. Mais do que a eles. Para nós, perceber que alguém que, um dia, consideramos que gostava de nós na mesma medida, afinal tem-nos em pouca conta, é perder um pedacinho do coração.
Mas a vida segue. E o amor-próprio sara a ferida. Tal como os verdadeiros amigos. Esses, que estarão sempre lá para nós. E o coração reconstrói-se. E continuará a achar-se um carro de corrida pelas estradas de paralelos desta vida.
Quando se despediam ao telefone, todas as noites, antes de adormecerem diziam, à vez: "Sonha comigo".
Pousavam os telemóveis nas mesinhas de cabeceira e sonhavam um com o outro.
Um dia, ele fartou-se de esperar pelo momento certo. A história deles era complicada. Houve negação, houve fuga, houve zangas. Mas era demasiado intenso o que os unia. Apesar de tudo o que os mantinha distantes.
Tinha a chave de casa dela. Sabia-a sozinha. Entrou-lhe pela cama dentro. Ela não se assustou. Era o sonho dela. Era o sonho dele.
Deixaram que o prazer que lhes invadia os sonhos lhes unisse os corpos. Sedentos de se conhecerem. De se entregarem. De se esgotarem um no outro, como se o desejo se findasse, como a água. Pelo contrário, a maré subia... A água escorria-lhes nos corpos suados, descobertos, ávidos.
Não era um encontro delicado. Era impossível sê-lo. A espera aguçara a vontade. Devoraram-se. Prenderam-se. Sem tabus. Sem medos.
O despertador tocou. 7h10. Ela virou-se para lhe olhar o corpo nú, estendido nos lençóis. Ele levantara-se. Preparava o café. Ensonada, foi até à cozinha. Lá estava ele. O café. Por preparar. O resto... tudo fora um sonho.
"Hoje preciso de um café forte!", disse para si mesma, antes de se meter no chuveiro (com ele, ainda), enquanto sussuravam, com carinho, ordinarices de dois loucos um pelo outro.
Logo a seguir, enviou-lhe uma mensagem: "A vida é demasiado curta para não sonhar. Mas é ainda mais curta para não viver...". E com um sorriso nos lábios, levou o sonho com ela, para o trabalho, nesse dia.
Caminhando a passo apressado, Patrícia revia a lista mental de tudo o que podia ou não dizer quando encontrasse Filipe. Não lhe queria admitir que passava ali de propósito, mais uma vez, para o encontrar. Tinha a desculpa perfeita: ia à lavandaria. Levava os sacos de roupa suja como ajudantes. O escritório onde ele trabalhava era mesmo em frente. Espreitou, na montra, não o viu. "Bolas, mais uma viagem em vão", pensou, desanimada.
Pousou os sacos, a olhar para a máquina da lavandaria self-service. Modernices que lhe lembravam os filmes românticos americanos de final previsível. "Pois, os filmes! Só nos criam ilusões parvas: encontramos um amor numa lavandaria", resmungou, para si mesma, enquanto metia a roupa na máquina.
Resolveu sentar-se, fechar os olhos e aproveitar para ouvir música até a máquina avisar que a missão estava cumprida. Dobrou a roupa sem pressas. "Até é melhor assim, se eu o visse, ia ficar com ideias... É o destino a avisar-me que não vale a pena lutar por causas perdidas! ", matutou, resignada. De roupa e alma lavadas, saiu sem olhar para o escritório de Filipe, rumo a casa.
No caminho, resolveu parar para tomar um café e um gelado na esplanada. "Eu mereço!", decidiu. Enquanto sentia a brisa suave fazer-lhe os cabelos esvoaçar, reparou num poema que alguém escrevera na parede, junto ao café. Era fã da rebeldia e da estética da mais democrática das artes: a que surgia nas ruas, para todos. Como era habitual, fotografou o achado. Como era habitual, lembrou-se de Filipe. Claro que não lhe enviou a fotografia a dizer que pensara nele quando lera aquilo.
Já em casa, depois de arrumada a roupa, sentou-se no sofá, a rever as redes sociais. E sim, a ver se tinha alguma mensagem de Filipe. "Vi-te passar hoje, mas ias com pressa", disse-lhe ele. Patrícia sorriu e conversou um bocado com ele. E podia ter ficado por ali, mas resolveu ir ao perfil dele. E viu o poema que ela gostara no mural dele. "Que coincidência, ele também viu e gostou!". Mas o entusiasmo desvaneceu-se e transformou-se em mágoa, tristeza, talvez ciúmes ("Não sou dessas coisas", repetia para si mesma). Filipe realmente também reparara no poema, mas dedicara-o à mulher que amava. Para azar (ou sorte), de ambos, essa mulher não era Patrícia.
Patrícia resolveu tomar uma medida drástica. O poema não lhe saía da cabeça. O Filipe também não, mas a ele, ela já estava habituada: já fazia parte da mobília cerebral. Pela calada da noite, levou o balde de tinta que sobrara das remodelações e pintou por cima do poema escrito na parede. Como a tinta era de um tom amarelo torrado, pintou um grande sol por cima do poema. O luar iluminou o sol. E Patrícia pôde ir, enfim, dormir em paz.
Era uma sexta-feira à tarde, quando Ruth comprou uns lápis de cor na papelaria. Eram 24, reluzentes e coloridos, como a vida deveria ser. Aparentemente, Ruth, de 39 anos, já passara da idade de pintar, mas desde que lhe disseram que era uma nova terapia anti-stress, começou a colorir livros e desenhos. Passados uns dias, quando alinhava os lápis de cor na caixa, reparou que nem todos estava iguais: uns estavam mais afiados do que outros, uns estavam maiores do que outros. Aliás, nenhum estava do mesmo tamanho. Pôs-se a pensar, nas razões para aquela assimetria. Era simples, a explicação: uns pintavam melhor do que outros, não escolhia sempre as mesmas cores, mas havia algumas de que gostava mais, o que podia mudar consoante o estado de espírito.
Para além da explicação lógica, o lado emocional de Ruth fez logo uma analogia com o amor. Encontrou-se com Sílvia e contou-lhe essa descoberta:
- O amor é uma caixa de lápis de cor.
A amiga riu-se. Estava preparada para mais uma teoria de Ruth:
- Ai sim, o amor é colorido?
Ruth explicou:
- Não é bem isso... Já reparaste que não amamos todos por igual? E que há amores que se desgastam, dia após dia, e são esses que queremos? E que há amores que esquecemos, por mais bonitos que sejam?
- Falta de coragem para arriscar novas cores? - provocou Sílvia.
- Não é falta de coragem... É que a vida nem sempre nos deixa usar a cor que nós queremos, aquela que, na verdade, mais gostamos e iria, de facto, colorir-nos.
- Há as cores básicas, que usamos por comodidade, e as cores mais arriscadas, às quais só nos atiramos se estivermos muito apaixonadas... ups... inspiradas - alinhou a amiga, desta vez.
- Começas a perceber a minha ideia... Mas espera, tenho que contar outra coisa importante: sabes que é muito triste quando os lápis que mais usamos não são sequer os que mais gostamos? Por exemplo, usamos o amarelo ou o azul porque sabemos que ficam bem no desenho e o que queríamos, mesmo, era pintar a flor de roxo e o sol de vermelho.
- Ai, os amores politicamente corretos... e os outros!
- Mais do que isso, minha amiga, os amores possíveis e os amores impossíveis. Aqueles amores que nos fazem parecer loucas... Em vez de pintar o cão de castanho, pintar o cão de verde garrafa, por exemplo...
- Traz-me os lápís! Deste-me uma ideia!
Ruth tirou os lápis do saco e Sílvia rabiscou no guardanapo, num vermelho garrido: "Diz-lhe que o amas e deixa-te de tretas." Ruth respondeu-lhe, do outro lado da folha, num azul celeste: "Ele sabe. Eu sei. Só que não dá. E eu não sei esquecer". Perante um silêncio embaraçoso, e depois de mais um café, as amigas despediram-se.
No dia seguinte, ao acordar, Ruth tinha uma surpresa na caixa do correio: um embrulho, deixado por Sílvia. Abriu-o rapidamente e lá tinha apenas duas coisas: uma borracha e um recado: "Se houver um desenho que não podes colorir, apaga-o...".