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Contos e ditos

A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.

Contos e ditos

A escrita é aquilo que eu sou. Por vezes, escrevo contos, outras vezes desabafos, um ou outro texto breve, alguns dias, poemas. Eu encontro-me na prosa, perco-me na poesia. Sempre de um jeito livre, simples e despretensioso, porque eu sou assim.

25
Fev18

Banco de suplentes? Não, obrigada!

Inês Aroso

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Um dia, ela fartou-se, atirou com a toalha ao chão. Estava cansada de estar ali sentada no banco de suplentes. Ele deixava-a ali, em lume brando, alimentando-lhe a esperança de um dia entrar em jogo. Quando a via esmorecer, ele lá ia reavivar a chama. Podia estar dias, semanas ou meses sem lhe ligar nenhuma. Sabia que bastava um telefonema, uma mensagem, um sorriso, um aceno. Ela sempre gostara dele e sempre havia de gostar. Resultava sempre. Até ao dia em que ela se fartou. Apagou o número dele. Deixou de lhe responder aos emails e mensagens. Quando o via, na rua, cumprimentava-o com frieza, por educação.

Ela valia muito, ele valia pouco. Mas ele fazia-a sentir exactamente o oposto. Ela ficava deliciada com a atenção dele, quando a tinha. Como se fosse um privilégio, ele perder tempo com ela. Mas quem perdeu tempo foi ela, numa relação que apenas alimentava o ego dele. Sabia que se algo lhe corresse mal na vida amorosa (se é que ele sabia o que isso era), tinha ali aquele plano B, aquela mulher estacionada no banco de suplentes. 

Uma mulher como ela, inteligente, bonita, alegre, independente, trabalhadora, não era mulher de ficar no banco de suplentes. Mas como o amor entorpece a mais lúcida das criaturas, ela demorou anos a perceber isso. Ela era mulher de ir a jogo. De ir a jogo e brilhar! Na verdade, e continuando na mesma metáfora futebolística, ela era uma jogadora demasiado talentosa e valiosa para a mente pequenina daquele treinador. Talvez, no fundo, ele soubesse disso. Que ela não ia jogar segundo as regras dele, mas segundo as leis do amor. E ele desconhecia-as ou temia-as. Era um homem imaturo, no pior sentido da palavra, incapaz de tomar decisões.

No dia em que ela saiu daquele jogo, do qual saía sempre a perder, mesmo sem entrar em campo, sentiu um tremendo orgulho em si mesma. Claro que teve medo. De hesitar, de fraquejar, de ceder. Mas conseguiu. Claro que custou. Demorou a acreditar que podia partilhar a vida com alguém que a valorizasse, apoiasse e amasse.

A melhor amiga insistia que ela devia arriscar e, de vez em quando, lá lhe promovia um encontro com um potencial candidato a namorado. Mas não foi com nenhum deles que ela ficou. No fundo, quando menos esperava, mas estava consciente do verdadeiro valor, teve coragem de dar uma oportunidade ao amor. A primeira a saber da novidade foi a melhor amiga, que, entre risos e lágrimas, lhe disse: "Eu disse-te que merecias ser feliz... Ai dele, se não te fizer tremendamente feliz". 

Passaram-se uns meses, quando, num passeio por um centro comercial, de mão dada com o novo companheiro para a vida, ela viu o antigo engodo. Ele passeava sozinho, gordo e triste, envelhecido. Olhava uma montra de sapatos, mas ao vê-la ficou embasbacado. A felicidade dela irradiava e tornava-a ainda mais bonita. Ela fez questão de parar, cumprimentá-lo e apresentar-lhe o namorado. Ele balbuciou qualquer coisa inaudível. Quando se afastaram, o namorado perguntou-lhe: "Quem era ela aquele palerma?". Ao que ela respondeu: "É o tal palerma...". Num impulso, ele correu para o outro que ainda continuava parado a olhar para eles e com um sorriso rasgado disse-lhe: "Obrigado, pá! Ainda bem que não ficaste com a mulher da minha vida". Voltou para ela, deu-lhe um beijo, e segredou-lhe: "Desculpa lá, não resisti, ele merecia...". E, no seu íntimo, ela sentiu que estava finalmente em paz. Agarrou-lhe a mão com força e sorriu. 

 

21
Fev18

Madalena e o mundo

Inês Aroso

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Madalena era a última das românticas. O último do sexo masculino era eu. Conversei com ela, numa tarde de outono, e contou-me a sua história. Era para ser uma entrevista sobre as mulheres que abdicam da carreira para gerirem a casa e educarem e cuidarem os filhos. O jornal para onde trabalhava pedira-me uma reportagem sobre esse tema e eu lá fui. Para mim, era incompreensível, em pleno século XXI, mulheres com formação média ou até com cursos superiores deixarem tudo para ficar em casa. Era uma cena típica de filme americano. Mas parti para a entrevista sem preconceitos nem estereótipos. Aliás, era assim que sabia que se fazia uma boa entrevista.

Sentamo-nos no salão de chá que sugerira. Percebi que era cliente frequente, pela forma como conversava com as funcionárias. Percebi, também, pelo seu olhar e pela sua serenidade, que era uma mulher inteligente, perspicaz, dinâmica e muito determinada. Não era nada do que eu estava à espera (lá estava eu a fugir para as imagens pré-concebidas).

Contou-me que tirou um curso de Marketing e Publicidade, uma excelente aluna, que aspirava ser publicitária. Apesar disso, acabou por trabalhar, de forma brilhante, num sector altamente concorrencial (e pouco criativo) ligado às finanças e à bolsa. Casou com o namorado de longa data e teve o primeiro filho. No início, ainda conseguiu conciliar a vida profissional e pessoal. Com a chegada do segundo filho, a empresa foi implacável e despediu-a, claro que contornando a lei e sem grandes hipóteses de contestação. 

Mas Madalena não era uma mulher de ficar à espera que a sorte lhe batesse à porta. Foi à luta e foi colocada no departamento de marketing de uma grande empresa. Ainda esteve lá dois ou três anos, mas, mais uma vez, teve que sair. Neste caso, porque estava a fazer sombra a algumas pessoas que não a queriam ver brilhar tanto. Ainda tentou um outro local e, pouco tempo depois, estava numa empresa na área de seguros, mas era um contrato precário e não foi renovado. Desta vez, foi muito humilhada, ela, uma profissional experiente, competente, com capacidades de concretização e liderança acima da média. Ela sabia o que valia. E prometeu a si mesma, com acordo do marido, fazer uma pausa. Dedicar-se à casa, a toda a gestão doméstica, e aos filhos, enquanto não surgia uma oportunidade digna das suas reais aptidões."As mulheres nunca foram tratadas em pé de igualdade com os homens no mercado de trabalho e dificilmente o vão ser", disse-me, convicta, mesmo sendo eu homem e estando ali, em frente a ela.

Explicou-me que aproveitou para colocar a casa em ordem, tinha muito jeito e gosto para a decoração e para a gestão em geral. Fez as arrumações que sempre quis fazer. Ficou disponível para levar e trazer os filhos da escola, levá-los às atividades, ajudá-los nos trabalhos de casa, fazer todas as refeições e, muitas vezes, fazer o papel de pai. O marido trabalhava numa multinacional que exigia muitas viagens ao estrangeiro e ela era a âncora da família. Era ela que permitia que a casa se mantivesse um lar.

Entretanto, eu estava deliciado, a ouvi-la, sem dar pelas horas passar. Mas ela, atenta, diz que que tem que ir buscar o filho à escola. Pediu-me imensa desculpa e perguntou-me se podíamos marcar para outro dia a continuação da entrevista. Na verdade, eu já tinha ali material suficiente para a reportagem, mas estava a gostar tanto de a ouvir que concordei. Aliás, sentia que o melhor da história ainda estaria por chegar. Era uma intuição jornalística ou simplesmente uma boa desculpa para a rever.

Combinamos para o dia seguinte, no mesmo sítio, de manhã, depois de ela deixar os miúdos na escola. Cheguei mais cedo, desta vez. Estava curioso por continuar a ouvir a história da Madalena. Esqueci-me de por o gravador a gravar, mas fui tomando notas no bloco de apontamentos. Cada vez estou mais fascinado por aquela mulher, que apenas conheci na véspera, e cada vez menos preocupado com a reportagem. Falou-me de como geria a casa, de como ajudava os filhos e o marido, de como aplicava a sua criatividade e dinamismo a organizar tudo, desde o quotidiano, às férias, às obras em casa, às compras, a tudo de que vive uma família. Contou-me também de planos para uma loja que queria abrir quandos os filhos fossem mais autónomos.

Quanto mais a ouço, mais a admiro. A dada altura, o jogo inverte-se e começa a fazer-me perguntas, sobre mim. Conto-lhe que, além de ser jornalista freelancer, gosto muito de artes plásticas e, de vez em quando, lá faço uma exposição, mas que a maioria das pinturas ficam em casa, no sótão. Ela diz que adora artes e que quando eu tiver uma exposição quer ir ver, que eu tenho o contacto dela, para a avisar.

Passam umas semanas, a reportagem é publicada e envio-lhe um email a avisar. Ela responde a dizer que já leu e que adorou. Que adorava ver os meus quadros. Eu respondo-lhe que só tenho quadros em casa, naquele momento... E ela responde-me o que eu mais temia: "Tenho a tarde livre, os miúdos vão passar a tarde a casa da avó". Apesar de só ter estado com ela duas vezes, eu sentia uma forte atracção por aquela mulher e sabia que com ela não poderia ter um simples caso, como os muitos que tivera ao longo de quase 20 anos de casamento com a Irene. Ela não era mulher de se contentar em ser um pedaço na vida de alguém. Ela era um mulher para ser o mundo de alguém.

Resolvi encarar as coisas com normalidade, e lá a recebi para ver os quadros. Toda ela cheirava bem e irradiava luz. Tinha uma classe natural e uma força às quais era difícil ficar indiferente. Entregou-me um ramo de flores do quintal dela (sim, também se dedicava à jardinagem). "Os homens também merecem flores"; disse-me, sorrindo. Pedi desculpa pela desarrumação "normal numa casa com miúdos" e lá fomos até ao sótão.

Fiquei a saber que ela além de apreciar, percebia mesmo de pintura. Corria tudo normalmente, até que ela me pergunta: "Queres-me pintar? Adorava ter um quadro meu... Nua". Devo ter ficado de todas as cores. Tentei balbuciar qualquer coisa, mas não consegui. Percebi, finalmente (dizem que nós, homens, somos um bocado burros nessas coisas) que ela também se sentia muito atraída por mim. Perante o silêncio embaraçoso, ela com habilidade ri-se e diz: "Estou a brincar, quem é que me ia querer nua... Às vezes, até fujo do espelho". Eu caio no jogo e confesso: "Eu não me importava nada... És uma mulher linda... Mas tenho medo de cair em tentação". Ela sorri... Olhamos um para o outro. Sabemos que não vamos fazer nada. Somos os últimos românticos num mundo imperfeito, por isso as nossas vidas nunca poderão caminhar lado a lado. Toco-lhe no rosto, desço a mão pelo pescoço, sinto a respiração dela... Abraço-a, mas o abraço fraterno esconde uma enorme vontade de a despir, ali, de a pintar, de fazer do corpo dela uma tela. Ela quase não resiste, dá-me um beijo na face, mas muito perto da boca. Os nossos corpos estão numa luta, para não cederem, para não se entregarem. Toca o meu telemóvel com um toque estridente, suspiro: "É o diretor do jornal, tenho que atender". "Claro, claro...", responde. Recompomo-nos. Fingimos que nada aconteceu. Despedimo-nos cordialmente. Percebemos que é melhor para ambos não nos encontrarmos.

De vez em quando, saio de propósito na paragem do metro perto do salão de chá onde a conheci. Noutro dia, vi-a. Ela apanhou-me a observá-la. Fiquei atrapalhado e fugi, como um adolescente. Logo de seguida, ela mandou-me uma mensagem: "Continuo à espera do convite para a pintura..." Não respondi. Não posso. Sei que ela me compreende. Não lhe posso oferecer o que ela merece: o mundo.

19
Fev18

Dois minutos sem ti

Inês Aroso

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Passaram quase 30 anos. Mas sabes como é, conforme a idade passa, vamos lembrando-nos mais e melhor da infância e juventude.

Regressa, então, comigo, aos nossos 14 ou 15 anos. Éramos da mesma turma, mas éramos tão diferentes... Eu a boa aluna, tímida, bem-comportada. Tu o rebelde, extrovertido que nos divertia a todos e não ligava muito às aulas. Apesar das diferenças, davamos-nos bem. Havia muito companheirismo, solidariedade e respeito entre colegas. Já com os professores, coitados, às vezes, bem que sofriam com as nossas malandrices...

Era mais uma tarde, de mais uma aula aborrecida para quem está na adolescência. Chega-me à mão um bilhete. Era normal. Trocávamos bilhetes para tudo. Para gozar com o professor que tinha o fecho das calças aberto, para combinar o bilhar a seguir às aulas, para decidir o que fazer no intervalo. Mas aquele bilhete era diferente. Era um poema. Uma declaração de amor. Sem nomes. Olhei para os lados. Não podia ser para mim. Quem ia mandar bilhetes para alguém tão sem graça como eu? Garantiram-me que sim, que era para mim. E ao longo da aula foram chegando mais bilhetes. Fico curiosa, pergunto, quase em surdina, de quem eram. Lá me disseram. E tu, lá no fundo da sala, sorriste para mim. O que pensei? Que estavas a brincar comigo. Que era uma partida qualquer. No intervalo, vais ter comigo e perguntas:

- Então, não me respondes? 

- Não me perguntaste nada...

- Oh, pensei que era evidente. Queres namorar comigo?

- Não sei, tenho que pensar...

- Ok, pensa até sexta-feira ao final das aulas.

Lá concordei e fui para casa. Pelo caminho contei o que se passava à minha melhor amiga (ou que eu achava que era). Aliás, não foi preciso contar, toda a gente da turma ficou logo a saber. Ela começa com os seus conselhos: "Nem penses em aceitar, ele é tão diferente de ti", "Imagina o que os teus mais pais diriam, tu a namorares...", "Ele se calhar só quer é gozar contigo". Com toda a minha ingenuidade, as palavras dela ecoavam na minha cabeça. Não podia contar a ninguém, por isso eram apenas as palavras dela que juntava às minhas próprias ideias. Mas eu quanto mais pensava, percebia que gostava de ti, admirava a tua rebeldia, o teu sentido de humor. Gostava do teu olhar e do teu sorriso, que iluminavam o teu rosto moreno.

Chegou sexta-feira, um nervoso miudinho invadia-me todo o corpo e mente. Tal como combinado, lá fomos nós, de mochilas às costas. Acompanhaste-me até casa e fizeste a pergunta:

- Então, já tens uma resposta para mim?

- Sim, acho melhor sermos só amigos.

- Tens a certeza?

- Acho que sim...

Despediste-te com gentileza, como um cavalheiro. E não insististe mais. Disseste que ias para a paragem de autocarro.

Mal entrei em casa, percebi que tinha dado a resposta errada. A resposta era "sim". Pousei a mochilha, disse que me tinha esquecido de uma coisa e fui a correr até à paragem de autocarro. Não te vi. Procurei em volta. E mais. E nada... Vi uma velhinha na paragem de autocarro para a tua terra e fui lá perguntar se o autocarro já tinha partido. Sim, "faz um minuto", disse-me ela. Mas eu achava que não tinhas ido nele. Que talvez estivesses por ali, ainda. Ou no café, com os amigos. Mas bloqueei. Ali. A olhar em volta. Só tinham passado dois minutos...

Regressei, triste, para casa. Estive dois minutos sem ti e foi o suficiente para ser tarde demais. Poderás perguntar: mas porque não disseste depois? Na semana seguinte? Noutro dia qualquer? Muito simplesmente, nunca mais tive coragem. E tu nunca mais perguntaste. As coisas podiam não ter ido a lado nenhum, éramos dois garotos, mas não fui sincera, nem tive coragem de te dizer o que sentia, deixei-me levar pela auto-estima do tamanho de uma ervilha e por uma falsa amiga invejosa. Desmascarei-a passado pouco tempo... E aprendi a confiar em poucas pessoas.

Esses dois minutos sem ti, passados muitos anos, foram muito úteis, porque tirei deles uma grande lição para a vida. Aprendi a dizer sempre o que penso: na hora. Agora, até sou impulsiva em excessso (dizem, com uma certa razão). Agora sei que dois minutos depois pode ser tarde. 

O que te escrevo não muda nada, do passado, do presente ou sequer do futuro, mas queria que soubesses, só porque sim. E porque foste, acima de tudo, um grande amigo. E estou-te grata, por isso. Para sempre.

 

Com amizade,

M.

15
Fev18

Afinal, havia outro(a)

Inês Aroso

 

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Quando somos trocados por outra pessoa, numa relação amorosa, costumamos comparar-nos com o(a) outro(a). O que é que ele(a) tem que eu não tenha?

Lembro-me de ser miúda e ouvir as sábias palavras da minha mãe, a propósito de umas pessoas conhecidas: "Os homens quando trocam, trocam sempre para pior". De facto, encontrei várias provas deste postulado ao longo da vida. Homens que trocam a mulher ou namorada por outra mais feia, mais burra, mais ruim e de pior carácter. Ou simplesmente, indecisos entre duas pretendentes, escolhem a maçã mais "à mão", mais podre por dentro e mais lustrosa por fora.

Acredito que isto também aconteça com as mulheres. Nós não temos tanta inteligência emocional (ou amorosa) como julgamos ter. Aliás, tenho desenvolvido a teoria que as mulheres podem ser muito inteligentes, mas quando se apaixonam estupidificam. Nem sempre escolhem o bom rapaz, o bom homem, o cavalheiro a seus pés. Às vezes, vão à luta pelo rufia, pelo aventureiro, pelo sedutor. Algumas, sobredotadas emocionais, decidem ficar solteiras. Os resultados saltam à vista: parecem mais novas, não se chateiam e, embora às vezes se sintam sozinhas, seguem as suas vidas livremente.

Voltando ao início, quando fizerem essa quase inevitável comparação o(a) vosso(a) rival amoroso, ponham as coisas em perspetiva. Ele(a) não presta? Ele(a) vai fazê-lo(a) infeliz? Ele(a) vale muito menos do que vocês? Não se preocupem. É o cumprir daquele velho ditado: quando um tem aquilo que merece! Ele(a) merece pior e vocês merecem muito melhor... 

09
Fev18

Amor analógico ou amor digital?

Inês Aroso

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Nas escolas secundárias, dos finais dos anos 80, início dos anos 90, circulavam uns miúdos crescidos, atualmente mais conhecidos como "adolescentes". Não tinham Snapchat, Twitter, Facebook, ou Instagram. Informação dramática:  nem sequer tinham telemóvel. Tirando uma outra comparação que não interessa para o caso (o comportamento, a educação ou a autonomia), falemos de amor! Sim, o amor importa!

Na verdade, a principal semelhança entre os adolescentes de há mais de 25 anos e os adolescentes de 2018 são as suas emoções, paixões, amores e desamores. Na adolescência, antes e agora, todos se apaixonam, perdidamente. E, na mesma medida, todos têm desgostos de amor que parecem incuráveis. E, como seres apaixonados, preocupam-se com as pequenas coisas. Uma borbulha? Aquela coisa horrível que o adolescente acha gigante, o espelho mal vê e os outros nem reparam? É um drama... "Ele(a) vai reparar e achar-me horrível..."

Muitas coisas mudaram, mas ainda há declarações de amor. Já não são os bilhetinhos enviados na sala de aula. Já não é o "Quero falar contigo no intervalo". Enviam-se mensagens no Messenger. Emojis com corações. Páginas ou frases no Instagram. Tiram-se fotos. Muitas fotos! Publicam-se frases apaixonadas. São as novas cartas de amor, mas, tal como as outras, não são ridículas.

Quando as coisas correm mal, já não se rasgam os bilhetes. Apagam-se fotos. "Desamigam-se" os ex-apaixonados. Apaga-se o rasto digital. É assim tão diferente? Não, não é... E até dá mais trabalho. As lágrimas, a dor, a sensação que o mundo acabou é igual. E os adultos dizem "Não ligues, isso passa!", porque continuam sem perceber.

Os beijos, roubados ou consentidos, tinham que ser discretos. No escurinho do cinema (como cantou a Rita Lee), no sítio mais recôndito da escola, na cave da casa da namorada, no lugar mais escondido do bar à sexta à tarde no final das aulas. Agora, gostam de registar o momento. Com fotos, outra vez, muitas fotos. Alguns beijos são mais clandestinos, mas, às vezes, como prova de amor, até partilham esse amor nas redes sociais. Mas um beijo é sempre um beijo. No mundo analógico ou no mundo digital.

O amor (e o desamor) não é melhor nem pior do que há 25 anos: é diferente na forma, mas igual no conteúdo. E os pais, tios, avós e professores que convivem com adolescentes têm que perceber de amor e falar-lhes sobre o amor. Sobre educação sexual, os jovens até recebem muito mais informações do que antigamente. O importante é filtrar essa informação e explicar sempre, sem tabus, o que eles acham que sabem só "porque viram no Youtube".

Mas fala-se pouco de amor. Quando for mais complicado, temos música, temos livros, temos até filmes, que nos ajudam nessa ingrata tarefa. Coragem! Falemos de amor. Falemos de paixão com os adolescentes. Pelo menos, aceitemos e façamos de tudo para os compreender. Tudo isto sempre com uma pontinha de inveja, admitamos, pela capacidade que estes têm de se apaixonarem perdidamente (e não com um pé atrás, como nós, adultos, descrentes).

Os amores adolescentes são especiais, e é por isso que nunca os esqueceremos. São os mais puros, são aqueles em que nos entregamos de forma mais ingénua. Sabemos que os adolescentes vão sofrer por amor, mas não os vamos privar disso. Deixemo-los sonhar... Mesmo com medo da queda, deixemo-los voar. 

03
Fev18

Sem poesia

Inês Aroso

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Às vezes, tudo é simples.

Um nó é apenas um nó. 

Uma nuvem é apenas uma nuvem.

Uma rua é apenas uma rua.

Uma pedra é apenas uma pedra.

Uma porta é apenas uma porta.

Um livro são só páginas. 

Nesses dias, não há metáforas.

Há rugas, há horários, há obrigações, há comprovativos, há falhas. 

Há tudo.

Só não há poesia.

 

(01/02/2016)

03
Fev18

Sinceridade

Inês Aroso

Há uma linha muito ténue que separa a sinceridade da falta de respeito. Enquanto admiro a primeira, abomino a segunda.

 
 (03/02/2013)

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01
Fev18

72 horas

Inês Aroso

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Ela

Falta 1 minuto. Olham o velho relógio da estação de comboios. Despedem-se com um beijo na face. E um abraço, sentido. Ela sente o cheiro dele e procura guardá-lo como se já não o soubesse de cor. Ele sente o cabelo despenteado dela a fazer-lhe comichão no nariz e sorri. Cada um ruma ao seu comboio.

Catarina carrrega a mochila entre os corredores apertados do comboio. Procura o seu lugar na carruagem. Quando finalmente está sentada junto à janela respira fundo. Percebe que as 72 horas acabaram. Já pode ligar o telemóvel. Mas em vez disso prefere fechar os olhos e centrar-se no regresso à vida real. E volta ao princípio daquela história. Tudo começara 5 meses antes.

 

Eles

Sentados à esplanada. Entre eles e o rio Douro, uma mesa com finos, amendoins e tremoços. É o pequeno luxo deles. Uma vez por mês, à sexta-feira, no final do trabalho, encontram-se ali. Conversam, dizem disparates e esquecem por uns momentos a corrida de todos os dias.

- "Só precisamos de 72 horas", diz ele.

- "Para quê? Para uma remodelação da casa?", ri-se.

- "Não... Para esquecer tudo... A mulher, o marido, as obrigações, o trabalho, os colegas, os filhos, os papéis que desempenhamos sempre, a toda a hora...", explicou.

- "As rotinas cansam...", concordou ela.

- "Sim, toda a gente devia ter direito a 72 horas por ano. Para si. Completamente livres de qualquer obrigação ou compromisso do quotidiano", declarou ele, entusiasmado.

- "Eu passaria as primeiras 12 horas a dormir", suspirou ela, cansada de acordar cedo todos os dias (quando tinha a sorte do mais pequeno a deixar dormir).

- "Podia ser, mas era um bocado um desperdício, não te lembras melhor de nada melhor para fazer?", perguntou, com aquela malícia no olhar que ela conhecia de cor.

- "Depende da companhia... Se fosse sozinha, ia dormir, de certeza... Mas talvez conhecesse alguém interessante e fizesse outras coisas...", riu-se.

- "Devias ir com alguém conhecido... Só tens 72 horas e vais perder tempo a conhecer alguém? Devias ir com alguém que conheças e alinhe. Alguém que não te julgue. Alguém que te acompanhe. Alguém que não te questione. Alguém que tenha a mesma dose de loucura do que tu. Alguém..."

Ela interrompeu-o:

- "Alguém como tu?"

- "Sim, tipo tu e eu... Vamos?", propôs.

- "Nunca daria certo, dariam pela nossa falta...", brincou ela.

- "Vamos levar isto a sério, traçar um plano...

Pagaram a conta e foram embora. E aquele plano iria ocupar-lhes todos os os tempos livres nas semanas que se seguiram.

Fizeram autênticos "brainstormings". Quando iriam? Quais os destinos? Que desculpas iam arranjar no trabalho e lá em casa? Mais importante ainda: o que iriam fazer nas 72 horas de fuga? Saborear em vez de simplesmente comer, beber o que lhes apetecesse, realizar fantasias sexuais de um e outro (e eram tantas), viajar sem pressas, visitar sítios pela primeira vez, cometer algumas loucuras?

Uma semana antes da data marcada, tudo estava decidido, mas ela lembrou-se de acrescentar uma regra que lhe parecia fundamental e ligou-lhe:

- "Olha, não podemos levar telemóvel. Se é para desligar do mundo tem que ser a sério".

- "Tens razão, faz sentido, telemóveis desligados a partir das 8h59 do dia 2 de fevereiro", concordou ele.

 

Ele

Dia 2 de fevereiro. 9h00. Ele está ligeiramente nervoso. Não a vê na central de autocarros onde combinaram encontrar-se. "Desistiu", pensa. Ela surge por trás dele (costuma ser ao contrário, ela é a distraída que é apanhada de surpresa).

- "Estou aqui há meia hora, queria fazer-te sofrer um bocadinho", admite.

- "És mesmo má, vais ter castigo...", diz, fingindo-se amuado.

Enquanto escolhem os lugares no autocarro, ele tem medo que ela tenho criado expectativas demasiado altas. E como parceiro de "crime", ele sente que as expetactivas dela em relação a ele também são altas. Suspira, enquanto reclina o assento. Teria sido boa ideia? Olha para ela, parece uma adolescente feliz mas assustada, numa saída às escondidas. E, no fundo, ela tem o seu quê de adolescente que os 40 (e muitos) não venceram. Será da ingenuidade com que vê o mundo, da paixão com que se entrega às pessoas e as coisas ou será apenas daquele mau feitio que a caracteriza? Quase a ler-lhe os pensamentos ela diz-lhe, sorrindo:

- "Ainda vais a tempo de sair, cúmplice..."

- "Estava mesmo a pensar nisso", confessa com uma gargalhada.

 

O livro

O autocarro já tinha feito alguns quilómetros quando ela lhe entrega um livro. Curioso, folheia-o. Está em branco... Não tem uma única letra impressa.

- "É o livro da nossa fuga. Vês? Não tem prólogo, índice, capítulos, agradecimentos, nem sequer epílogo... Quero que a nossa fuga seja assim, um livro em branco."

- "Lembras-te de cada uma, caramba", e ri-se, descontraído.

As 72 horas passaram. Fizeram tudo o que planearam. E mais além. Cumpriram os desejos que os corpos suplicavam. Sucumbiram às fantasias mais inconfessáveis. Renovaram as almas com a vivência da novidade e da autenticidade. Perderam-se no tempo, no espaço, nos sabores, nos cheiros, no toque. Esqueceram o mundo, lembraram-se de quem realmente eram e do que realmente queriam. E queriam-se um ao outro. Muito. De variadas formas. Nos mais diversos sentidos.

O livro não ficou em branco. Ele ia escrevendo, mas ela também. Pequenos textos, nomes de lugares, de restaurantes, de bares, de pessoas. Por vezes, eram apenas rabiscos. 

 

A folha

No dia em que regressou a casa, ele sentou-se no sofá e folheou o livro. Percebeu que tinha as folhas amarrotadas. E uma folha cor-de-rosa, presa com um clip, que destoava das outras. Era dela. Só podia ser.

Dizia apenas: "Foram as melhores 72 horas da minha vida. Mas deixaste de ser o meu cúmplice e agora és outra vez o meu marido. Já fui ao supermercado e deixei-te comida na cozinha para fazeres magia para o jantar. Chego às 21h. Beijo".